Título: Flores
Autor: Afonso Cruz
Género: Ficção, Romance
Data de Lançamento: Julho 2019
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 280
ISBN: 9789896658038
Classificação: 4/5
Terminado em Outubro 2023
Wook: Flores
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Uma história sobre a memória e o que sobra de nós quando esta falta. Uma obra sobre a compreensão da vida, da morte, do amor e da efemeridade da nossa passagem. Floreada (sim, foi de propósito) com as mais belas metáforas e figuras de estilo.
“Flores” é a história de dois vizinhos muito diferentes: o Sr. Ulme e o Kevin, o narrador.
O Sr. Ulme sofre muito com todas as notícias que recebe do mundo e apercebe-se um dia que não se lembra do seu primeiro beijo ou de ver uma mulher nua, no fundo, não se lembra da sua vida. O segundo, o nosso narrador, é jornalista mas vive alheio das desgraças do mundo, preso na rotina e monotonia da sua vida, mas obcecado com um chapéu pousado fora do lugar em sua casa.
Kevin, o jornalista desiludido com a vida:
« Outras vezes eu simplesmente não atendo. E são essas as nossas melhores conversas.»
« Creio que, numa relação, o beijo terá sempre de manter a densidade do primeiro, a história de uma vida, todos os pores-do-sol, todas as palavras murmuradas no escuro, toda a certeza do amor. Mas já não é assim. (…)Toco levemente os lábios dela e sabe-me à rotina, às finanças, ao barulho da máquina de lavar roupa. Beijamo-nos como quem faz a cama.»
O nosso narrador jornalista, perdido na sua própria vida, decide então ocupar-se da procura de respostas sobre a vida do seu vizinho sendo que o objetivo é perceber quem é o Sr. Ulme. Sem contar, vai se descobrindo pelo caminho.
« Dá sempre jeito andar com uma pá, temos tantas coisas para desenterrar nas nossas vidas, memórias, dores, alegrias. »
A deterioração da doença do Sr. Ulme e a sua incapacidade de falar de forma percetível poderiam ser sinónimo de insanidade, mas é esta personagem que nos transmite a maior clareza e sensibilidade emocional, bem como os melhores pensamentos sobre a vida:
«- Sabe porque não somos felizes? – perguntou ele.
– Desespero, solidão, medo?
– Não. Por causa da realidade.»
Acabamos por ter perspetivas diversas e díspares sobre o Sr. Ulme e a sua vida, provando-nos duas coisas:
1) A nossa identidade é posta em causa sem as nossas memórias do passado
« As mães são as fiéis depositárias da nossa infância, dos primeiros anos. As tuas memórias mais importantes, mais formadoras, não são tuas, são dela. E quando a tua mãe morrer, levará consigo a tua infância, perderás os primeiros anos da tua vida. Por isso, trata-a bem. »
2) Cada pessoa tem uma perspetiva diferente de quem é o outro, e muitas das vezes é mais próxima de um reflexo seu.
As flores são, ao longo do livro, retratadas como símbolo da efemeridade da vida.
« Cheira tudo a flores, o fim das coisas cheira a flores, não é a esgoto e a podre »
Acaba por ser um livro de redenção para o narrador, porque no fim acaba por pôr as coisas em perspetiva e aceitar, entre outras coisas, que os chapéus podem estar fora do sítio. Acaba por contrariar o seguinte pensamento que tinha partilhado no início do livro:
« Porque viver não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias, viver é precisamente o oposto, é aquilo que não fazemos todos os dias »
Porque viver também é aproveitar as pequenas e rotineiras coisas da vida.
Outras citações que adorei do livro:
«Uma coisa são lágrimas de cebola e outra são lágrimas do coração »
« Mais do que o sofrimento infligido pelas populares chamas, o abismo do nada é mais assustador. Pelo menos para mim. Deixar de ser é pior do que sofrer por ser ou ter sido.»
« (…) pois se eram de mundos diferentes, não é?
– Talvez esses mundos aprendam a passear de mãos dadas.»
« Temos de ter a morte sempre ao pé de nós, como uma cadela fiel que levamos à rua e alimentamos com ração. Ou ainda mais próxima, mais próxima que a pele.»
« As nossas cabeças são realmente estranhas, conseguem esquecer tudo, roubar-nos a infância, mas preservam números de telefone. Apagam um primeiro beijo, mas não esquecem uma canção.»
« Levanto o coração, como se faz a um tapete, para ver se não há nada debaixo dele.»
« Os frutos são o resultado de tudo. O caroço que se cospe é a vida. É isso, pai, é a vida. É o caroço que temos de encontrar e perceber que isso somos nós, prontos a ser cuspidos, esse lugar desprezível é o mais importante.»
« Para cada pessoa que sente alguma luminosidade dentro dela há sempre uma outra com vontade de desligar o interruptor »
« Se uma pessoa consegue acreditar na política, na sociedade, numa vitória do Sporting, então o que é que custa acreditar na eternidade? »
« A solidão deve ser a única emoção que não conseguimos partilhar, se o fizermos ela desaparece.»
« O nosso passado era um cadáver que dormia na nossa cama, entre os nossos corpos.»



